Ensinar matemática é algo além de passar conteúdos. Na visão de alguns estudiosos, é a tarefa mais árdua dentro de uma escola. Como educador, precisamos utilizar ferramentas adequadas aos diversos fatores envolvidos no processo. O uso de brinquedos e brincadeiras é uma das metodologias mais atrativas, principalmente nas primeiras séries do Ensino Fundamental II.
Resolvi extrair um trecho do texto "O
papel do brinquedo no desenvolvimento", Segundo Vygotsky.
Ótimo recado para quem resolver utilizar esse caminho.
Definir o brinquedo
como uma atividade que dá prazer à criança é incorreto por duas razões.
Primeiro, muitas atividades dão à criança experiências de prazer muito mais
intensas do que o brinquedo, como por exemplo, chupar chupeta, mesmo que a
criança não se sacie. E, segundo, existem jogos nos quais a própria atividade
não é agradável, como por exemplo predominantemente 62 no fim da idade
pré-escolar, jogos que só dão prazer à criança se ela considera o resultado
interessante. Os jogos esportivos (não somente os esportes atléticos, mas
também outros jogos que podem ser ganhos ou perdidos) são, com muita
frequência, acompanhados de desprazer, quando o resultado é desfavorável para a
criança.
No entanto, enquanto o prazer não pode ser visto como uma característica
definidora do brinquedo, parece-me que as teorias que ignoram a fato de que o
brinquedo preenche necessidades da criança, nada mais são do que uma
intelectualização pedante da atividade de brincar. Referindo-se ao
desenvolvimento da criança em termos mais gerais, muitos teóricos ignoram,
erroneamente, as necessidades das crianças - entendidas em seu sentido mais
amplo, que inclui tudo aquilo que é motivo para a ação. Frequentemente
descrevemos o desenvolvimento da criança como o de suas funções intelectuais;
toda criança se apresenta para nós como um teórico, caracterizado pelo nível de
desenvolvimento intelectual superior ou inferior, que se desloca de um estágio
a outro.
Porém, se ignoramos as necessidades da criança e os incentivos que são
eficazes para colocá-la em ação, nunca seremos capazes de entender seu avanço
de um estágio do desenvolvimento para outro, porque todo avanço está conectado
com uma mudança acentuada nas motivações, tendências e incentivos.
Aquilo que é de
grande interesse para um bebê deixa de interessar uma criança um pouco maior. A
maturação das necessidades é um tópico predominante nessa discussão, pois é
impossível ignorar que a criança satisfaz certas necessidades no brinquedo. Se
não entendemos o caráter especial dessas necessidades, não podemos entender a
singularidade do brinquedo como uma forma de atividade. A tendência de uma
criança muito pequena é satisfazer seus desejos imediatamente; normalmente, o
intervalo entre um desejo e a sua satisfação é extremamente curto. Certamente
ninguém jamais encontrou uma criança com menos de três anos de idade que
quisesse fazer alguma coisa dali a alguns dias, no futuro. Entretanto, na idade
pré-escolar surge uma grande quantidade de tendências e desejos não possíveis
de serem realizadas de imediato.
Acredito que, se as necessidades não
realizáveis imediatamente não se desenvolvessem durante os anos escolares, não
existiriam os brinquedos, uma vez que eles parecem ser inventados justamente
quando as crianças começam a experimentar tendências irrealizáveis. Suponha que
uma criança muito pequena (talvez com dois anos e meio de idade) queira alguma
coisa - por exemplo, ocupar o papel de sua mãe. Ela quer isso imediatamente. Se
não puder tê-lo, poderá ficar muito mal humorada; no entanto, comumente, poderá
ser distraída e acalmada de forma a esquecer seu desejo. No início da idade
pré-escolar, quando surgem os desejos que não podem ser imediatamente
satisfeitos ou esquecidos, e permanece ainda a característica do estágio
precedente de uma tendência para a satisfação imediata desses desejos, o
comportamento da criança muda.
Para resolver essa tensão, a criança em idade
pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não
realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo. A
imaginação é um processo psicológico novo para a criança; representa uma forma
especificamente humana de atividade consciente, não está presente na
consciência de crianças muito pequenas e está totalmente ausente em animais.
Como todas as funções da consciência, ela surge originalmente da ação.
O velho adágio de
que o brincar da criança é imaginação em ação deve ser invertido podemos dizer
que a imaginação, nos adolescentes e nas crianças em idade pré-escolar, é o
brinquedo sem ação. A partir dessa perspectiva, torna-se claro que o prazer
derivado do brinquedo na idade pré-escolar é controlado por motivações
diferentes daquelas do simples chupar chupeta. Isso não quer dizer que todos os
desejos não satisfeitos dão origem a brinquedos (como, por exemplo, quando a
criança quer andar de trole, e esse desejo não é imediatamente satisfeito,
então, a criança vai para o seu quarto e faz de conta que está andando de
trole).
Raramente as coisas acontecem exatamente dessa maneira. Tampouco a
presença de tais emoções generalizadas no brinquedo significa que a própria
criança entende as motivações que dão origem ao jogo. Quanto a isso, o
brinquedo difere substancialmente do trabalho e de outras formas de atividade.
Assim, ao estabelecer critérios para distinguir o brincar da criança de outras
formas de atividade, 63 concluímos que no brinquedo a criança cria uma situação
imaginária. Esta não é uma ideia nova, na medida em que situações imaginárias
no brinquedo sempre foram reconhecidas; no entanto, sempre foram vistas somente
como um tipo de brincadeira. A situação imaginária não era considerada como uma
característica definidora do brinquedo em geral, mas era tratada como um
atributo de subcategorias específicas do brinquedo. Considero essas ideias
insatisfatórias sob três aspectos.
Primeiro, se o brinquedo é entendido como
simbólico, existe o perigo de que ele possa vir a ser considerado como uma
atividade semelhante à álgebra; isto é, o brinquedo, como a álgebra, poderia
ser considerado como um sistema de signos que generalizam a realidade, sem nenhuma
característica que eu considero específica do brinquedo. A criança poderia ser
vista como um desafortunado especialista em álgebra que, não conseguindo
escrever os símbolos, representa-os na ação.
Acredito que o
brinquedo não é uma ação simbólica no sentido próprio do termo, de forma que se
torna essencial mostrar o papel da motivação no brinquedo. Segundo, esse
argumento, enfatizando a importância dos processos cognitivos, negligencia não
somente a motivação como também as circunstâncias da atividade da criança. E,
terceiro, essas abordagens não nos ajudam a compreender o papel do brinquedo no
desenvolvimento posterior. Se todo brinquedo é, realmente, a realização na
brincadeira das tendências que não podem ser imediatamente satisfeitas, então
os elementos das situações imaginárias constituirão, automaticamente, uma parte
da atmosfera emocional do próprio brinquedo.
Consideremos a atividades da
criança durante o brinquedo. Qual o significado do comportamento de uma criança
numa situação imaginária? Sabemos que o desenvolvimento do jogar com regras
começa no fim da idade pré-escolar e desenvolvesse durante a idade escolar.
Vários pesquisadores, embora não pertencentes ao grupo dos materialistas
dialéticos, trataram esse assunto segundo linhas de abordagem recomendadas por
Marx, quando ele dizia que "a anatomia do homem é a chave para a anatomia
dos macacos antropóides". Começaram seus estudos das primeiras atividades
de brinquedo à luz do brinquedo baseado em regras que se desenvolve
posteriormente, e concluíram que o brinquedo envolvendo uma situação imaginária
é, de fato, um brinquedo baseado em regras. Pode-se ainda ir além, e propor que
não existe brinquedo sem regras.
A situação imaginária de qualquer forma de
brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com
regras formais estabelecidas a priori. A criança imagina-se como mãe e a boneca
como criança e, dessa forma, deve obedecer as regras do comportamento maternal.
Sully já observara que, notavelmente, crianças pequenas podem fazer coincidir a
situação de brinquedo e a realidade(1). Ele descreveu um caso em que duas
irmãs, com idades de cinco e sete anos, disseram uma para outra: "Vamos
brincar de irmãs?". Elas estavam encenando a realidade. É muito fácil, por
exemplo, fazer uma criança brincar de ser criança enquanto a mãe representa o
papel de mãe, ou seja, brincar do que é realmente verdadeiro.
A diferença
fundamental, como Sully descreve, é que, ao brincar, a criança tenta ser o que
ela pensa que uma irmã deveria ser. Na vida, a criança comporta-se sem pensar
que ela é a irmã de sua irmã. Entretanto, no jogo em que as irmãs brincam de
"irmãs", ambas estão preocupadas em exibir seu comportamento de irmã;
o fato de as duas irmãs terem decidido brincar de irmãs induziu-as a adquirir
regras de comportamental. Somente aquelas ações que se ajustam a essas regras
são aceitáveis para a situação de brinquedo: elas se vestem como, falam como,
enfim, encenam tudo aquilo que enfatiza suas relações como irmãs à vista de
adultos e estranhos.
A mais velha, segurando a mais nova pela mão, pode falar,
referindo-se a outras pessoas: "Aquilo é delas, não nosso". Isso
significa: "Eu e minha irmã agimos da mesma maneira e somos tratadas da
mesma maneira, mas os outros são tratados de maneira diferente." Neste
exemplo a ênfase está na similitude de tudo aquilo que está ligado ao conceito
que a criança tem de irmã; como resultado do brincar, a criança passa a
entender que as irmãs têm entre elas uma relação diferente daquela que têm com
outras pessoas.
O que na vida real
passa despercebido pela criança torna-se uma regra de comportamento no
brinquedo. O que restaria se o brinquedo fosse estruturado de tal maneira que
não houvesse situações imaginárias? Restariam as regras. Sempre que há uma
situação imaginária no brinquedo, há regras - 64 não as regras previamente
formuladas e que mudam durante o jogo, mas aquelas que têm sua origem na
própria situação imaginária.
Portanto, a noção de que uma criança pode se
comportar em uma situação imaginária sem regras é simplesmente incorreta. Se a
criança está representando o papel de mãe, então ela obedece as regras de
comportamento maternal. O papel que a criança representa e a relação dela com
um objeto (se o objeto tem seu significado modificado) originar-se-ão sempre
das regras. A princípio parecia que a única tarefa do pesquisador ao analisar o
brinquedo era revelar as regras ocultas em todo brinquedo; no entanto, tem-se
demonstrado que os assim chamados jogos puros com regras são, essencialmente,
jogos com situações imaginárias.
Da mesma forma que uma situação imaginária tem
que conter regras de comportamento, todo jogo com regras contém uma situação
imaginária. Jogar xadrez, por exemplo, cria uma situação imaginária. Por quê?
Porque o cavalo, o rei, a rainha, etc. só podem se mover de maneiras
determinadas; porque proteger e comer peças são, puramente, conceitos de
xadrez. Embora no jogo de xadrez não haja uma substituição direta das relações
da vida real, ele é, sem dúvida, um tipo de situação imaginária. O mais simples
jogo com regras transforma-se imediatamente numa situação imaginária, no
sentido de que, assim que o jogo é regulamentado por certas regras, várias
possibilidades de ação são eliminadas. Assim como fomos capazes de mostrar, no
começo, que toda situação imaginária contém regras de uma forma oculta, também
demonstramos o contrário - que todo jogo com regras contém, de forma oculta,
uma situação imaginária. O desenvolvimento a partir de jogos em que há uma
situação imaginária às claras e regras ocultas para jogos com regras às claras
e uma situação imaginária oculta delineia a evolução do brinquedo das crianças.
Ação e significado
no brinquedo É enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma
criança. Para uma criança com menos de três anos de idade, é essencialmente
impossível envolver-se numa situação imaginária, uma vez que isso seria uma
forma nova de comportamento que liberaria a criança das restrições impostas
pelo ambiente imediato. O comportamento de uma criança muito pequena é
determinado, de maneira considerável - e o de um bebê, de maneira absoluta -
pelas condições em que a atividade ocorre, como mostraram os experimentos de
Lewin e outros(2). Por exemplo, a grande dificuldade que uma criança pequena
tem em perceber que, para sentar-se numa pedra, é preciso primeiro virar de
costas para ela, como demonstrou Lewin, ilustra o quanto a criança muito
pequena está limitada em todas as ações pela restrição situacional.
É difícil
imaginar um contraste maior entre o que se observa no brinquedo e as restrições
situacionais na atividade mostrada pelos experimentos de Lewin. É no brinquedo
que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera
visual externa, dependendo das motivações e tendências internas, e não dos
incentivos fornecidos pelos objetos externos. Um estudo de Lewin sobre a
natureza motivadora dos objetos para uma criança muito pequena conclui que os
objetos ditam à criança o que ela tem que fazer: uma porta solicita que a abram
e fechem, uma escada, que a subam, uma campainha, que a toquem.
Resumindo, os
objetos têm uma tal força motivadora inerente, no que diz respeita às ações de
uma criança muito pequena, e determinam tão extensivamente o comportamento da
criança, que Lewin chegou a criar uma topologia psicológica: ele expressou,
matematicamente, a trajetória do movimento da criança num campo, de acordo com
a distribuição dos objetos, com diferentes forças de atração ou repulsão. A
raiz das restrições situacionais sobre uma criança situa-se no aspecto
principal da consciência característica da primeira infância: a união de
motivações ù e percepção. Nesta idade, a percepção não é, em geral, um aspecto
independente, mas, ao contrário, é um aspecto integrado de uma reação motora.
Toda a percepção é um estímulo para a atividade. Uma vez que uma situação é
comunicada 65 psicologicamente através da percepção, e desde que a percepção
não está separada da atividade motivacional e motora, é compreensível que a
criança, com sua consciência estruturada dessa maneira, seja restringida pela
situação na qual ela se encontra. No brinquedo, no entanto, os objetos perdem
sua força determinadora. A criança vê um objeto, mas age de maneira diferente
em relação àquilo que ela vê. Assim, é alcançada uma condição em que a criança
começa a agir independentemente daquilo que ela vê. Certos pacientes (com lesão
cerebral) perdem a capacidade de agir independentemente do que vêem.
Considerando tais pacientes, pode-se avaliar que a liberdade de ação que os
adultos e as crianças mais maduras possuem não é adquirida num instante, mas
tem que seguir um longo processo de desenvolvimento.
A ação numa situação
imaginária ensina a criança a dirigir seu comportamento não somente pela
percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta de imediato, mas
também pelo significado dessa situação. Observações do dia-a-dia e experimentos
mostram, claramente, que é impossível para uma criança muito pequena separar o
campo do significado do campo da percepção visual, uma vez que há uma fusão
muito íntima entre o significado e o que é visto. Quando se pede a uma criança
de dois anos que repita a sentença "Tânia está de pé", quando Tânia
está sentada na sua frente, ela mudará a frase para "Tânia está
sentada". Exatamente a mesma situação é encontrada em certas doenças.
Goldstein e Gelb descreveram vários pacientes que eram incapazes de afirmar
alguma coisa que não fosse verdadeira. Gelb possui dados de um paciente que era
canhoto e incapaz de escrever a sentença "Eu consigo escrever bem com
minha mão direita". Ao olhar pela janela num dia bonito, ele é incapaz de
repetir "O tempo está feio hoje", mas dirá "O tempo está
bonito". Observamos, frequentemente, que um paciente com distúrbios na
fala é incapaz de repetir frases sem sentido, como, por exemplo, "A neve é
preta", enquanto outras frases com mesmo grau de dificuldade em sua
construção gramatical e semântica podem ser repetidas. Esta ligação entre
percepção e significado pode ser vista no processo de desenvolvimento da fala
nas crianças. Quando você diz para a criança, "relógio", ela passa a
olhar para o relógio. A palavra tem o significado, originalmente, de uma
localização espacial particular.
Na idade pré-escolar
ocorre, pela primeira vez, uma divergência entre os campos do significado e da
visão. No brinquedo, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das
ideias e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e um cabo de
vassoura torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser determinada
pelas ideias e não pelos objetos. Isso representa uma tamanha inversão da
relação da criança com a situação concreta, real e imediata, que é difícil
subestimar seu pleno significado.
A criança não realiza toda esta transformação
de uma só vez porque é extremamente difícil para ela separar o pensamento (o
significado de uma palavra) dos objetos. O brinquedo fornece um estágio de
transição nessa direção sempre que um objeto (um cabo de vassoura, por exemplo)
torna-se um pivô dessa separação (no caso, a separação entre o significado
"cavalo" de um cavalo real ) . A criança não consegue, ainda, separar
o pensamento do objeto real. A debilidade da criança está no fato de que, para
imaginar um cavalo, ela precisa definir a sua ação usando um
"cavalo-de-pau" como pivô. Nesse ponto crucial a estrutura básica
determinante da relação da criança com a realidade está radicalmente mudada,
porque muda a estrutura de sua percepção. Como discuti nos capítulos
anteriores, um aspecto especial da percepção humana, que surge muito cedo na
vida da criança, é a assim chamada percepção dos objetos reais, ou seja, não
somente a percepção de cores e formas, mas também de significados. Isso é algo
para o que não há analogia na percepção animal.
Os seres humanos não vêem
meramente alguma coisa redonda e branca com dois ponteiros; eles vêem um
relógio e podem distinguir uma coisa da outra. Assim, a estrutura da percepção
humana pode ser expressa, figurativamente, como uma razão na qual o objeto é o
numerador e o significado é o denominador (objeto/significado ) 66 Essa razão
simboliza a ideia de que toda a percepção humana é feita de percepções
generalizadas e não isoladas. Para a criança, o objeto é dominante na razão
objeto/significado e o significado subordina-se a ele.
No momento crucial
em que, por exemplo, um cabo de vassoura torna-se o pivô da separação do
significado "cavalo" do cavalo real, essa razão se inverte e o
significado passa a predominar, resultando na razão significado/objeto. Isso
não quer dizer que as propriedades das coisas como tais não têm significado.
Qualquer cabo de vassoura pode ser um cavalo mas, por exemplo, um cartão postal
não pode ser um cavalo para uma criança. E incorreta a afirmação de Goethe de
que no brinquedo qualquer objeto pode ser qualquer coisa para uma criança. E
claro que, para os adultos que podem fazer um uso consciente dos símbolos, um
cartão postal pode ser um cavalo. Se eu quiser representar, alguma coisa, eu
posso, por exemplo, pegar um palito de fósforo e dizer: "Isto é um
cavalo". Isto seria suficiente.
Para uma criança, entretanto, o palito de
.fósforo não pode ser um cavalo uma vez que não pode ser usado como tal,
diferentemente de um cabo de vassoura; devido a essa falta de substituição
livre, o brinquedo e não a simbolização, é a atividade da criança. Um símbolo é
um signo, mas o cabo de vassoura não funciona como signo de um cavalo para a
criança, a qual considera ainda a propriedade das coisas mudando no entanto,
seu significado. No brinquedo, o significado torna-se o ponto central e os
objetos são deslocados de uma posição dominante para uma posição subordinada.
No brinquedo, a criança opera com significados desligados dos objetos e ações
aos quais estão habitualmente vinculados; entretanto, uma contradição muito
interessante surge, uma vez que, no brinquedo, ela inclui, também, ações reais
e objetos reais. Isto caracteriza a natureza de transição da atividade do
brinquedo: é um estágio entre as restrições puramente situacionais da primeira
infância e o pensamento adulto, que pode ser totalmente desvinculado de
situações reais.
Quando um cabo de
vassoura torna-se o pivô da separação do significado "cavalo" do
cavalo real, a criança .faz com que um objeto influencie outro semanticamente.
Ela não pode separar o significado de um objeto, ou uma palavra do objeto,
exceto usando alguma outra coisa como pivô. A transferência de significados é
facilitada pelo fato de a criança reconhecer numa palavra a propriedade de um
objeto; ela vê não a palavra, mas o objeto que ela designa. Para uma criança, a
palavra "cavalo" aplicada ao cabo de vassoura significa "eis um
cavalo", porque mentalmente ela vê o objeta por trás da palavra. Um
estágio vital de transição em direção à operação com significados ocorre
quando, pela primeira vez, a criança lida com os significados como se fossem
objetos (como, por exemplo, ela lida com o cabo de vassoura pensando ser um
cavalo ) . Numa fase posterior ela realiza esses atos de forma consciente.
Nota-se essa mudança, também, no fato de que, antes de a criança ter adquirido
linguagem gramatical e escrita, ela sabe como fazer várias coisas sem saber que
sabe. Ou seja, ela não domina essas atividades voluntariamente. No brinquedo,
espontaneamente, a criança usa sua capacidade de separar significado do objeto
sem saber que o está fazendo, da mesma forma que ela não sabe estar falando em
prosa e, no entanto, fala, sem prestar atenção às palavras.
Dessa forma, através
do brinquedo, a criança atinge uma definição funcional de conceitos ou de
objetos, e as palavras passam a se tornar parte de algo concreto. A criação de
uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança; pelo contrário,
é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições
situacionais. O primeiro paradoxo contido no brinquedo é que a criança opera
com um significado alienado numa situação real. O segundo é que, no brinquedo,
a criança segue o caminho do menor esforço - ela faz o que mais gosta de fazer,
porque o brinquedo está unido ao prazer - e, ao mesmo tempo, ela aprende a
seguir os caminhos mais difíceis, subordinando-se a regras e, por conseguinte,
renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição a regras e a renúncia à
ação impulsiva constitui o caminho para o prazer no brinquedo. 67
Continuamente
a situação de brinquedo exige que a criança aja contra o impulso imediato. A
cada passo a criança vê-se frente a um conflito entre as regras do jogo e o que
ela faria se pudesse, de repente, agir espontaneamente. No jogo, ela age de
maneira contrária à que gostaria de agir. O maior autocontrole da criança
ocorre na situação de brinquedo. Ela mostra o máximo de força de vontade quando
renuncia a uma atração imediata do jogo (como, por exemplo, uma bala que, pelas
regras, é proibido comer, uma vez que se trata de algo não comestível ) .
Comumente, uma
criança . experiência subordinação a regras ao renunciar a algo que quer, mas,
aqui, a subordinação a uma regra e a renúncia de agir sob impulsos imediatos
são os meios de atingir o prazer máximo. Assim, o atributo essencial do
brinquedo é que uma regra torna-se um desejo. As noções de Spinoza de que
"uma ideia que se tornou um desejo, um conceito que se transformou numa
paixão", encontram seu protótipo no brinquedo, que é o reino da
espontaneidade e liberdade. Satisfazer as regras é uma fonte de prazer. A regra
vence porque é o impulso mais .forte. Tal regra é uma regra interna, uma regra
de autocontenção e autodeterminação, como diz Piaget, e não uma regra que a
criança obedece à semelhança de uma lei física. Em resumo, o brinquedo cria na
criança uma nova forma de desejos. Ensina-a a desejar, relacionando seus
desejos a um "eu" fictício, ao seu papel no jogo e suas regras.
Dessa
maneira, as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo,
aquisições que no futuro tornar-se-ão seu nível básico de ação real e
moralidade. Separando ação e significado Podemos, agora, dizer sobre a
atividade da criança o mesmo que dissemos sobre os objetos. Assim como tínhamos
a razão objeto/significo temos também a razão ação/significado. Enquanto no
início significado do desenvolvimento domina a ação, posteriormente essa
estrutura se inverte: o significado torna-se o numerador, enquanto a ação ocupa
o lugar de denominador. Numa criança em idade escolar, inicialmente a ação
predomina sobre o significado e não é completamente compreendida. A criança é
capaz de fazer mais do que ela pode compreender. Mas é nessa idade que surge
pela primeira vez uma estrutura de ação na qual o significado é o determinante,
embora a influência do significado sobre o comportamento da criança deva-se dar
dentro dos limites fornecidos pelos aspectos estruturais da ação. Tem-se
mostrado que crianças, ao brincar de comer, realizam com suas mãos ações
semiconscientes do comer real, sendo impossíveis todas as ações que não
represente o comer. Assim, mostrou-se não ser possível, por exemplo, colocasse
as mãos para trás ao invés de estendê-las em direção ao prato, uma vez que tal
ação teria um efeito destruidor sobre o jogo. Uma criança não se comporta de
forma puramente simbólica no brinquedo; ao invés disso, ela quer e realiza seus
desejos, permitindo que as categorias básicas da realidade passem através de
sua experiência. A criança, ao querer, realiza seus desejos. Ao pensar, ela
age. As ações internas e externas são inseparáveis: a imaginação, a
interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela ação externa.
O que foi dito sobre
a separação do significado dos objetos aplica-se igualmente às próprias ações
da criança. Uma criança que bate com os pés no chão e imagina-se cavalgando um
cavalo, inverteu, por conseguinte, a razão/ação/significado para a razão significado/ação.
A história do desenvolvimento da relação entre significado e ação é análoga à
história do desenvolvimento da relação significado/objeto. Para separar o
significado de uma ação real (cavalgar um cavalo, sem a oportunidade de
fazê-lo), a criança necessita de um pivô na forma de uma ação que substitui a
ação real. Enquanto a ação começa como numerador da estrutura significado/ação,
neste momento a estrutura se inverte e o significado torna-se o numerador. A
ação recua para o segundo plano e torna-se o pivô; novamente, significado
separa-se da ação através de uma ação diferente. Este é outro exemplo da
maneira pela qual o comportamento humano passa a depender de operações baseadas
em significados, onde as motivações que iniciam o comportamento estão
nitidamente separadas da realização. Entretanto, separar significado de
objeto tem consequências diferentes da separação entre significado e ação.
Assim como operar com o significado de coisas leva ao pensamento abstrato,
observamos que o desenvolvimento da vontade, a capacidade de fazer escolhas
conscientes, ocorre quando a criança opera com o significado de ações. No
brinquedo, uma ação substitui outra ação, assim como um objeto substitui outro
objeto. Como a criança se desloca de um objeto para outro, de uma ação para
outra? Isto se dá graças a um movimento no campo do significado - o qual
subordina a ele todos os objetos e ações reais. O comportamento não é
determinado pelo campo perceptivo imediato. No brinquedo, predomina esse
movimento no campo do significado. Por um lado, ele representa movimento num
campo abstrato ( o qual, assim, aparece no brinquedo antes do aparecimento da
operação voluntária com significados).
Por outro lado, o
método do movimento é situacional e concreto. (É uma mudança afetiva e não
lógica). Em outras palavras, surge o campo do significado, mas a ação dentro
dele ocorre assim como na realidade. Por este fato, o brinquedo contribui com a
principal contradição para o desenvolvimento. Conclusão Eu gostaria de concluir
esta discussão sobre o brinquedo mostrando, primeiro, que ele não é o aspecto
predominante da infância, mas é um fator muito importante do desenvolvimento.
Em segundo lugar, quero demonstrar o significado da mudança que ocorre no
desenvolvimento do próprio brinquedo, de uma predominância de situações
imaginárias para a predominância de regras.
E, em terceiro, quero mostrar as
transformações internas no desenvolvimento da criança que surgem em
consequência do brinquedo. De que forma o brinquedo está relacionado ao
desenvolvimento? O comportamento da criança nas situações do dia-a-dia é,
quanto a seus fundamentos, oposto a seu comportamento no brinquedo. No
brinquedo, a ação está subordinada ao significado; já, na vida real, obviamente
a ação domina o significado.
Portanto, é
absolutamente incorreto considerar o brinquedo como um protótipo e forma
predominante da atividade do dia-a-dia da criança. Esta é a principal
incorreção na teoria de Koffka. Ele considera o brinquedo como o outro mundo da
criança (4). Tudo o que diz respeito à criança é realidade de brincadeira,
enquanto tudo o que diz respeito ao adulto é realidade séria. Um dado objeto
tem um significado no brinquedo e outro significado fora dele. No mundo da
criança, a lógica dos desejos e o ímpeto de satisfazê-los domina, e não a
lógica real. A natureza ilusória do brinquedo é transferida para a vida, Tudo
isso seria verdade se o brinquedo fosse de fato a forma predominante da
atividade da criança. No entanto, é difícil aceitar esse quadro insano que nos
vem à mente na medida em que admitimos essa forma de atividade como a
predominante no dia-a-dia da criança, mesmo se parcialmente transferida para a
vida real. Koffka dá vários exemplos para mostrar como uma criança transfere
uma situação de brinquedo para a vida. Mas a transferência ubíqua do
comportamento de brinquedo para a vida real só poderia ser considerada como um
sintoma doentio. Comportar-se numa situação real como numa situação ilusória é
o primeiro sinal de delírio. Situações de brinquedo na vida real só são
encontradas habitualmente num tipo de jogo em que as crianças brincam aquilo
que de fato estão fazendo, criando, de forma evidente, associações que
facilitam a execução de uma ação desagradável (como, por exemplo, quando as
crianças não querem ir para a cama e dizem: "Vamos fazer-de-conta que é
noite e que, temos que ir dormir" ). Assim, parece-me que o brinquedo não
é o tipo de atividade predominante na idade pré-escolar.
Somente as teorias
que afirmam que a criança não tem que satisfazer as necessidades básicas da
vida, mas pode viver à procura do prazer, poderiam sugerir, possivelmente, que
o mundo da criança é o mundo do brinquedo. Considerando esse assunto a
partir de uma perspectiva oposta, será que poderia supor que o comportamento da
criança é sempre guiado pelo significado? Que o comportamento de uma criança em
idade pré-escolar é tão árido que ela nunca se comporta espontaneamente,
simplesmente porque pensa que poderia comportar-se de outra maneira? Essa
subordinação estrita às regras é quase impossível na vida; no entanto, torna-se
possível no brinquedo.
Assim, o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento
proximal da criança. No brinquedo, a criança sempre se comporta além do
comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no
brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade. Como no foco de uma
lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob
forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento. Apesar
da relação brinquedo-desenvolvimento poder ser comparada à relação instrução
desenvolvimento, o brinquedo fornece ampla estrutura básica para mudanças das
necessidades e da consciência. A ação na esfera imaginativa, numa situação
imaginária, a criação das intenções voluntárias e a formação dos planos da vida
real e motivações volitivas - tudo aparece no brinquedo, que se constitui,
assim, no mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar.
A criança
desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo. Somente neste
sentido o brinquedo pode ser considerado uma atividade condutora que determina
o desenvolvimento da criança. Como muda o brinquedo? E notável que a criança
comece com uma situação imaginária que, inicialmente, é tão próxima da situação
real. O que ocorre é uma reprodução da situação real. Uma criança brincando com
uma boneca, por exemplo, repete quase exatamente o que sua mãe faz com ela.
Isso significa que, na situação original, as regras operam sob uma forma
condensada e comprimida. Há muito pouco de imaginário.
É uma situação
imaginária, mas é compreensível somente à luz de uma situação real que, de
fato, tenha acontecido. O brinquedo é muito mais a lembrança de alguma coisa
que realmente aconteceu do que imaginação. É mais a memória em ação do que uma
situação imaginária nova. À medida que o brinquedo. se desenvolve, observamos
um movimento em direção à realização consciente de seu propósito. E incorreto
conceber o brinquedo como uma atividade sem propósito. Nos jogos atléticos,
pode-se ganhar ou per der; numa corrida, pode-se chegar em primeiro, segundo ou
último lugar.
Em resumo, o
propósito decide o jogo e justifica a atividade. O propósito, como objetivo
final, determina a atitude afetiva da criança no brinquedo. Ao correr, uma
criança pode estar em alto grau de agitação ou preocupação e restará pouco
prazer, uma vez que ela ache que correr é doloroso; além disso, se ela for
ultrapassada experimentará pouco prazer funcional. Nos esportes, o propósito do
jogo é um de seus aspectos dominantes, sem o qual ele não teria sentido - seria
como examinar um doce, colocá-lo na boca, mastigá-lo e então cuspi-lo. Naquele
brinquedo, o objetivo, que é vencer, é previamente reconhecido. No final do
desenvolvimento surgem as regras, e, quanto mais rígidas elas são, maior a
exigência de atenção da criança, maior a regulação da atividade da criança,
mais tenso e agudo torna-se o brinquedo.
Correr simplesmente, sem propósito ou
regras, é entediante e não tem atrativo para a criança. Consequentemente, na
forma mais avançada do desenvolvimento o brinquedo, emerge um complexo de
aspectos originalmente não desenvolvidos - aspectos que tinham sido secundários
ou incidentais no início, ocupam uma posição central no fim e vice-versa.
Em um sentido, no
brinquedo a criança é livre para determinar suas próprias ações. No entanto, em
outro sentido, é uma escrita liberdade ilusória, pois suas ações são, de fato,
subordinadas aos significados dos objetos, e a criança age de acordo com eles.
Sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imaginária
pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento abstrato. O
desenvolvimento correspondente de regras conduz a ações, com base nas quais
torna-se possível a divisão entre trabalho e brinquedo, divisão esta encontrada
na idade escolar como um fato fundamental.
E Tal como disse, em
sentido figurado, um pesquisador, para uma criança com menos de três anos de
idade o brinquedo é um jogo sério, assim como o é para um adolescente, embora,
é claro, num sentido diferente da palavra; para uma criança muito pequena, brinquedo
sério significa que ela brinca sem separar a situação imaginária da situação
real. Para uma criança em idade escolar, o brinquedo torna-se uma forma de
atividade mais limitada, predominantemente do tipo atlético, que preenche um
papel situações específico em seu desenvolvimento, e que não tem o mesmo
significado do brinquedo para uma criança em idade pré-escolar.
Na idade escolar, o
brinquedo não desaparece, mas permeia à realidade. Ele tem sua própria
continuação interior na instrução escolar e no trabalho ( atividade compulsória
baseada em regras).A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação
entre o campo do significado e o campo da percepção visual - ou seja, entre
situações no pensamento e situações reais. Superficialmente, o brinquedo tem
pouca semelhança com a forma, tornar fechado em forma de pensamento e a volição
complexas e mediadas a que o conduz. Somente uma análise profunda torna
possível determinar o seu curso de mudanças e seu papel no desenvolvimento.